quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Diário literário janeiro/2015 Parte VI

10/2015 A festa da insignificância - Milan Kundera (2014)

Capa brochura, 136 pgs, Companhia das Letras, 2014

Tenho Kundera gravado no corpo, literalmente. O conheci por uma frase solta que me levou a tatuá-la no corpo e a conhecer sua mais conhecida obra "A insustentável  leveza do ser". Na obra, que relata o triângulo amoroso entre Tereza, Sabrina e Tomaz, percebi que o autor cita situações históricas que o afetaram diretamente. Logo, depois de várias resenhas lidas sobre as obras do autor, achei por bem ler uma biografia confiável antes de ler outro romance. Mas, após indicação (normalmente não acompanho lançamentos e costumo sempre ler livros após anos de publicação) me senti curiosa em ler uma obra escrita após mais de dez anos de silêncio.

Após ler várias resenhas (prática que tenho antes, durante e depois da leitura) percebi que seria interessante ler um pouco mais sobre o autor, pois se trata de um elo entre ele e o leitor. Levando em conta que o autor não dá entrevistas e que o material virtual é repetitivo sobre sua biografia, tenho pouco a citar sobre Milan. Foi expulso do Partido Comunista, tem ódio ao comunismo linha dura, está exilado na França desde 1975 e suas obras têm sempre algo relacionado com sua vida. Sobre as resenhas atuais da obra em questão, ainda é cedo para criar algo exclusivo, parecendo todas (inclusive a minha) a soma de alguma ou a resenha genérica de outra. Não há muito a se fazer. No silêncio do autor sobre sua intenção, não adivinhamos, apenas deduzimos a partir das nossas conclusões. 

Milan Kundera

A obra é um romance filosófico que faz ponte entre Paris dos dias atuais e a União Soviética do passado. No início, o personagem Alain (possível alter ego do autor) passeia pelas ruas parisienses e reflete sobre os centros da sedução feminina na visão dos homens ou das épocas. No passado, esses centros foram a coxa (caminho), a bunda (o caminho mais curto em direção ao objetivo) e os seios (santificação da mulher), mas na geração atual o centro da sedução feminina é o umbigo. Questionando o motivo para tal, esse tema "umbigo" será tratado mais de uma vez na obra, tendo o questionamento respondido no final da obra:

 

O amor, outrora, era a festa do individual, do inimitável, a glória do que é único, do que não suporta qualquer repetição. Mas o umbigo não só não se revolta contra a repetição, é um apelo às repetições! Vamos viver, no nosso milênio, sob o signo do umbigo. Sob este signo, somos todos, tanto um como outro, soldados do sexo, com o mesmo olhar fixo não sobre a mulher amada mas sobre o mesmo pequeno buraco no meio da barriga que representa o único sentido, o único fim, o único futuro de todo o desejo erótico. (125)

 

Fica óbvia a primeira crítica ácida do autor sobre a geração da atualidade, a uniformidade. Para o autor a individualidade é uma ilusão. Mas, esse individualismo é abordado também de outro ângulo, daquele que trata como insignificante o outro e entra na dança das culpas:

 

"Se sentir ou não se sentir culpado. Acho que tudo depende disso. A vida é uma luta de todos contra todos. (...) Em vez disso, tentam jogar no outro o constrangimento da culpabilidade. Ganhará aquele que conseguir tornar o outro culpado. Perderá aquele que reconhecer sua culpa. (...) você também pertence ao exército dos desculpantes. Pensa que vai agradar o outro com suas desculpas. (...) Quem se desculpa se declara culpada. E se você se declara culpado, encoraja o outro a continuar te injuriando, te denunciando, publicamente, até sua morte. São as consequências fatais do primeiro pedido de desculpas." (54)

 

Podemos dizer que o autor pegou pesado com a caneta. Alain, além da sua relação imaginária e idealizadora que tenta justificar a rejeição da sua mãe por ele, tem uma namorada chamada Madeleine. A moça aparece uma vez, e fica outra ácida crítica da sociedade atual, a desinformação. Não conhecendo quem foi Stálin, o autor indica a falta de pertencimento ao desconhecer ou se interessar em conhecer o passado. A perca de tal conhecimento leva pessoas ao desinteresse político e a não participação do destino da sociedade. Vale refletir sobre o pileque homérico dos jovens atuais, levando em conta que Milan foi um estudante ativista político.

Falando em Stálin, ele aparece em várias vezes (não como personagem), o que a princípio pode ser complicado de entendimento. Charles, segundo amigo citado (são quatro ao todo, os demais são secundários) lendo as memórias de Nikita Khruschóv aos amigos relata a piada das perdizes contada por Stálin. Só que, ninguém sabia que era uma piada. Ora, nada mais atual da nossa forma de levar a sério o que não é para ser levado. O mesmo personagem cria uma peça imaginária de marionetes que não vai colocar em prática. Cria em sua mente pois nada o distrai. Somos de uma geração que procura distração a qualquer preço. Então quero abordar sobre Ramon (terceiro amigo) e D´Ardelo

Ramon aparece no segundo capítulo (apesar que a obra é dividida em sete partes e não aparece a palavra capítulo) no Jardim de Luxemburgo e desisti de ver uma exposição de Chagall pelo tamanho da fila. No final da obra, linkamos com essa tendência a qualquer coisa para nos distrair, quando Ramon desiste novamente da exposição pelo mesmo motivo:

 

Você acha que, de uma hora para outra, começaram a gostar de Chagall? Estão dispostos a ir a qualquer lugar, a fazer qualquer coisa, apenas para matar o tempo com o qual não sabem o que fazer”. (123)

 

Ramon encontra D´Ardelo e esse mente sobre um câncer que não tem. O último sente prazer na pequena anedota, mesmo sem entender o motivo. Acredito que esse fato esteja no mesmo nível da criação da culpa no outro, a criação da empatia, da pena ou de qualquer coisa que nos deixe no centro do pensamento do outro. Sobre D´Ardelo, vale ressaltar também a presença de comportamento que anteriormente era presente apenas no universo feminino. A questão da idade:

"Já muitos anos antes, ele tinha começado a detestar aniversários. Por causa dos números que se colavam neles. No entanto, não conseguia esnobá-los, pois a felicidade de ser festejado superava nele a vergonha de envelhecer" (13)

Ramon entra em contato a pedido de D´Ardelo de Charles para organizar um coquetel de aniversário do mesmo. Conversando sobre esse com Charles, Ramon vai deixar pérolas sobre o brilhantismo, narcisismo e gêneses sobre a insignificância. Para Ramon, D´Ardelo é um sujeito narcisista que faz de tudo para ser o centro da atenção. Diferente do orgulhoso que subestima o outro, o narcisista vê no outro a própria imagem, então o superestima, sendo gentil a qualquer preço. Ele tenta ser um ser brilhante. 

Então entra na cena, Quaquelique, que consegue chamar a atenção fazendo silêncio. A insignificância o liberta de toda e qualquer competição e há inutilidade em tentar ser brilhante. Ressalto que D´Ardelo é o tipo de cara que na tentativa de ser brilhante, zomba, satiriza e usa de sarcasmo. Algo bem presente na sociedade atual e apresentado na atitude de Calibã (quarto personagem) que criou um linguajar para zombar dos convidados nos coquetéis que trabalha com Charles. Ramon mediante o medo de Charles ser descoberto na sua linguagem criada:

"O prazer da  mistificação devia protegê-los. Aliás, essa foi a estratégia de todos nós. Nós compreendemos há muito tempo que não era mais possível mudar este mundo, nem remodelá-lo, nem impedir sua infeliz trajetória para  a frente. Havia uma única resistência possível: não o levar a sério. Mas constato que nossas gozações perderam seu poder. Você se obriga a falar paquistanês para se divertir. Em vão. Sente apenas cansaço e tédio."

E sobre o tédio, inimigo da sociedade atual, Ramon o sente e procura bom humor para lidar com o mesmo. Em um diálogo com Calibã, cita Hegel em um estudo sobre o cômico. Repito o bom humor que é diferente de zombaria, sátira e sarcasmo. 

"Somente das alturas do infinito bom humor é que você pode observar abaixo de si a eterna tolice dos homens e ri dela". (90)

 

Voltando para Calibã (ator falido e seu nome é devido a um personagem que encenou de Shakeaspeare), quando percebeu que acabara o divertimento do seu linguajar criado, sentiu-se inútil. 

"... o sentimento de inutilidade de sua língua trabalhosamente inventada e a melancolia começou a invadi-lo" (64). 

 

Creio que não seja necessário dissertar muito sobre nossas criações para nos distrair e toda melancolia quando as mesmas perdem sua utilidade. Dá-lhe fluoxetina na geração do século XXI. Volto mais uma vez para citar Quaquelique, outrora citado, pois é paralelo ao tema aqui abordado. Ramon na obra fala que ele é um conquistador por seu silêncio e ausência de comportamento "brilhante". Não devemos por isso acreditar que o silêncio dele é a insignificância como essência, pois no final do coquetel de D´Ardelo o mesmo diz para Ramon:

Sabe, não tem nada pior que o tédio. É por isso que mudo de companhia. Sem isso, não existe bom humor!" (78)

Bom, acho que falei sobre quase todos os personagens. Sobre a presença de Stálin, não quero dissertar sobre a suposta "ternura" dele ao dar nome a cidade de Kaliningrado em homenagem ao seu amigo Kalinin e nem dissecar o problema de próstata do último citado. Preciso ruminar mais e ler mais sobre isso.

Kalinin

Mas, vale a pena descrever a ideia de Kant de "a coisa em si" e a de Schopenhauer. Para Kant, por detrás de nossas representações, encontra-se uma coisa objetiva, que não podemos conhecer mas que, apesar disso é real. Mas essa ideia é falsa. Não existe nada de real por detrás de nossas representações, nenhuma "coisa em si". Já para Schopenhauer, o mundo é apenas representação e vontade. Por detrás do mundo tal como o vemos não existe nada de objetivo, e que, para fazer existir essa representação, para torná-la real, deve haver nela uma vontade; uma vontade enorme que a imponha. (Vale a pena refletir, principalmente porque Stálin declara que impôs a vontade de todos à uma única vontade, a sua). 

O desfecho (apesar que ainda tem muito para refletir e personagens - a empregada portuguesa, madame La Franck, Julie, Kalinin, ...) se dá após uma apresentação nos Jardins de Luxemburgo e no diálogo de D´Ardelo com Ramon. O último (acaba confirmando o que citei sobre Quaquelique e o seu silêncio) afirma que a insignificância é a essência da existência. Que ela está conosco em toda parte e até nos locais onde não queremos vê-la. É preciso amá-la, até mesmo com sua inutilidade, pois ela é a chave da sabedoria, ela é a chave do bom humor. 

Lembre-se que Milan dialoga conosco na obra e é visível em três capítulo, então não se assuste se ele lhe causar um certo tédio nas últimas páginas. Com certeza, foi proposital. Digno de "leia novamente"!

Gostaria muito de dissecar sobre o episódio das perdizes, da tentativa de homicídio que virou assassinato (que vejo uma inclinação psicológica fortíssima), mas ainda é cedo para uma única leitura (do livro). Logo, essa resenha corre risco de edições. Não fiz como as demais, início meio e fim, pois se o autor não se sentiu na obrigação de linearidade, quem sou eu para me obrigar a fazer. Indico, com precauções. Um prévio conhecimento do autor e leitura de resenhas que não contenha spoiler. Espero que a minha não contenha, me esforcei para isso.