quinta-feira, 10 de setembro de 2015

O queijo e os vermes


Pesquisando em 1962 sobre os julgamentos de uma estranha seita de Friuli, o autor Carlo Ginzburg, encontrou uma sentença curiosa. O réu, Menocchio, sustentava que o mundo tinha sua origem na putrefação. O livro, O queijo e os vermes, narra sobre sua história apoiado em farta documentação. Mas, a intenção não é apenas biográfica, também tenta analisar a cultura camponesa da Europa pré-industrial, numa era marcada pela difusão da imprensa e a Reforma Protestante (bem como a repressão a esta última nos países católicos). O livro também é o estudo da cultura imposta às classes populares e não apenas a apresentação da cultura produzida pelas classes populares.

Chamava-se Domenico Sandella, conhecido por Menocchio. Nascido em 1532, em Montereale, foi casado e pai de sete filhos. Segundo afirmou a um padre era carpinteiro, marceneiro, pedreiro, mas sua principal profissão era moleiro. Se vestia como tal, capa e capuz de lã branca. Foi magistrado da aldeia e administrador da paróquia local. Sabia ler, escrever e somar. Em 28 de setembro de 1583 foi denunciado ao Santo Ofício, sob a acusação de ter pronunciado palavras heréticas. De fato ele debatia sua opinião em praças e tabernas. Para alguns, seu debate se assemelhava às opiniões de Lutero. O clero era hostil a ele, e esse fato era explicado, pois Menocchio não reconhecia na hierarquia eclesiástica, nenhuma autoridade especial. Para ele, Deus estava em tudo e Maria após o nascimento de Jesus, não permaneceu mais virgem. Tinha uma Bíblia em vulgar em sua casa, livro proibido pela Igreja. Se apresentou à convocação do tribunal eclesiástico, mas no dia seguinte foi levado ao cárcere do Santo Ofício de Concórdia. Em 07 de fevereiro de 1584 foi submetido a um primeiro interrogatório.

Durante o inquérito preliminar, diante das estranhas opiniões referidas pelas testemunhas, o vigário-geral perguntara se Menocchio era sã de mente. Esse afirmou que sim, que estava dentro da sua razão. Um dos seus filhos ainda tentou espalhar o boato pela cidade que o pai era louco, mas o vigário deu continuidade ao processo mesmo assim. Se fosse hoje, Menocchio seria sim considerado um lunático religioso, mas em plena Contra-Reforma, as modalidades de exclusão eram outras, a identificação e a repressão da heresia. No caso de Menocchio em especial, havia um apanhado de ideias subversivas, inclusive sua cosmogonia: "que tudo era um caos, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo movimento junto se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos...

Por volta do fim de abril, os priores venezianos convidaram o inquisidor de Aquileia e Concordia, a agir de acordo com os hábitos vigentes nos territórios da República, que impunham, nas causas do Santo Ofício, a presença de um magistrado secular ao lado dos juízes eclesiásticos. O conflitos entre os dois poderes era tradicional. No passado, Menoccho tinha dito estar pronto e desejoso de declarar suas opiniões às autoridades e seculares. Incentivado a falar, Menocchio abandonou qualquer reticências e: denunciou a opressão dos ricos contra os pobres através do uso do latim nos tribunais; achava que na lei vigente o papa, os cardeais, os padres eram grandes e ricos e que esses arruinavam os pobres arrendando terras; recusava todos os sacramentos por serem invenções humanas, mercadorias, instrumentos de exploração e opressão por parte do clero; a hóstia era apenas um pedaço de massa; que a Sagrada Escritura tinha sido dada por Deus, mas, em seguida, foi adaptada pelos homens; que a santidade era um modelo de vida; criticou as relíquias ... implorou a piedade aos inquisidores, mas na verdade o processo estava longe de terminar. Dias depois desejavam ouvi-lo novamente.

O livro também relata sobre Friuli da segunda metade do século XVI: uma sociedade arcaica e ainda dominada pelas grandes famílias da nobreza feudal. Essas famílias estavam em dois partidos, a favor ou contra Veneza, que começou a dominar em 1420. Essa disputa política iniciou um violento conflito de classes, e em várias localidades do Friuli os camponeses faziam reuniões secretas. Após a efêmera revolta camponesa de 1511, acentuou-se a tendência veneziana de apoiar os camponeses do Friuli contra a nobreza feudal. Entre meados do século XVI e meados do XVII, ou por causa das frequentes epidemias ou pela intensificação da imigração, a população total do Friuli diminuiu. Veneza estava decadente e a economia friulana já se encontrava em estado de avançada desagregação.

O movimento anabatista, depois de ter se alastrado por grande parte da Itália foi desmantelado na segunda metade do século XVI pela perseguição religiosa e política. De forma geral negavam as imagens sacras, as cerimônias, os sacramentos, negavam a divindade de Cristo, insistiam na adesão à uma religião prática baseada nas obras, pobreza versus a pompa da Igreja. A princípio poderíamos vincular as ideias de Menocchio aos anabatistas, mas entre outras coisas, ele discordava que a inspiração divina viesse apenas apenas do Evangelho. Para Menocchio, entretanto, a inspiração poderia vir de livros os mais variados: tanto do Fioretto della Bibbia quanto de Decameron.

Parece que Menocchio afirmava manter contatos com grupos luteranos, mas quando o inquisidor perguntou-lhe sobre o seu entendimento pela justificação, ele não compreendeu a pergunta. Após a explicação, Menocchio negou e afirmou "se alguém pecou, é preciso fazer penitência". O mesmo ocorreu com o termo predestinação, que após explicação ele disse não acreditar que Deus predestinava alguém à vida eterna. Justificação e predestinação, os dois temas sobre os quais a discussão religiosa na Itália se acirrava no período da Reforma, que não significavam nada para o moleiro. Mesmo com a profunda separação da Itália entre cidade e campo, o último não ignorava por inteiro as formas de inquietação religiosa. Por trás dessas discussões contemporâneas percebe-se a presença maciça de tradições diversas. A reforma rompendo com a crosta da unidade religiosa, trouxe à tona, de forma indireta o substrato de tais tradições. Assim sendo, não é possível remeter as afirmações de tom radical feitas por Menocchio ao anabatismo e nem a um genérico luteranismo. Talvez elas faziam parte de um novo autônomo de radicalismo camponês que o tumulto da Reforma contribuíra para que emergisse.

A obra contém muitas citações dos livros aos quais Menocchio teve contato e o contexto histórico que os autores estavam inseridos. De forma geral, percebe-se a cultura popular misturada com o conhecimento cristão, e a Inquisição que usou do tribunal para aniquilar qualquer coisa que não coincidisse com os ensinamentos da Igreja. Indico.