Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar (Adriana Calcanhotto)
Devo começar informando que muitas críticas que li sobre o filme O quarto ao lado de Pedro Almodóvar, citaram a ausência das ditas cores tão presentes em seus filmes. Incrível que foi a primeira coisa que percebi, pois uma das características do diretor é usar das cores para transmitir o humor do personagem/situação. Elas estão bem presentes, mas de uma maneira mais "outono", digamos assim. Bom, não vou dar muitas informações técnicas sobre o filme, só resumir em: Julianne Moore e Tilda Swinton. Já é o bastante para você confiar que vai ser interessante. Um diretor genial e duas atrizes fenomenais. Acrescento que é baseado na obra literária de Sigrid Nunez "What we are going through" (O que você está enfrentando) e é a primeira produção em inglês.
Bom, duas grandes amigas do passado, Ingrid e Martha. Trabalharam juntas e bem íntimas... na época. Pausa no relacionamento dessa amizade por um distanciamento de tempo e espaço. A primeira se tornou uma escritora famosa e que em seu último livro debate o tema da morte, algo que ela não compreende. A segunda, reporter de guerras que vivenciou muitas tragédias e mortes. As duas tem bagagem cultural e isso vai ser debatido em vários momentos do filme. Martha está vivendo a sua própria tragédia pessoal: um câncer. Após participar de tratamentos como cobaia toma uma decisão a qual envolve Ingrid, a eutanásia.
A partir de agora não vou mais falar do enredo, apesar de ser digno de reflexão, afinal é um filme que cita aquecimento global, mundo pós pandemia, solidão, amizade, pessimismo, otimismo, morte e afins. Agora em diante serão as minhas próprias reflexões. Eu detestei Martha. Isso parece algo cruel, afinal é ela que está morrendo e a morte tem esse poder de absolver tudo e todos. Martha tem um conflito com a sua filha e ela tem um motivo para tudo o que fez. A filha ausente em um momento tão delicado e Martha querendo poupá-la, só fortalece a "bondade" da mãe abandonada, que, se analisarmos bem, abandonou a filha ao viajar tanto.
O que fortaleceu a minha opinião sobre ela foi a fala do seu ex-contato físico e sexual, Damian (John Turturno), para Ingrid (que também se relacionou/relaciona com ele em um outro formato mais "humano"). Martha tinha pressa em suas relações íntimas e ele chega a citar a palavra "terrorismo". Mas se dermos um maior zoom, ele não é tão diferente de Martha na sua racionalidade diante da vida e da morte. Por isso que será ele o responsável em achar uma advogada para Ingrid. A escritora sempre transfere essa racionalidade para "não quero falar sobre isso agora" ou "vamos falar sobre isso depois". O melhor diálogo foi entre ele e Ingrid:
"Perdi completamente a fé de que as pessoas façam a coisa certa". Damian
"Há muitas formas de viver dentro de uma trágedia" Ingrid
Sobre Ingrid, sei que pessoas assim existem. Me refiro a grandeza do seu coração. Mas eu tenho a sensação que foi mais por não saber dizer "não". Martha em certo momento disse que sabia do sucesso da amiga escritora. Por que nunca ligou? Por que as duas não se mantiverem conectadas? Sei que a vida moderna faz mulheres com carreiras de sucesso tomarem decisões dificeis no campo da maternidade e relacionamentos. Sei também que é mais uma das provocações reflexivas do diretor. Mas a frase de Ingrid mediante a informação da câncer da amiga "como eu não fiquei sabendo?" me faz pensar que não eram tão íntimas assim para Ingrid ter que aceitar a escolha da amiga. Ela não foi obrigada, mas a partir da primeira visita teve a sua vida transformada e foi entrando de novo na vida de Martha a partir de pedidos da amiga doente, não por iniciativa própria.
Claro que existiam outras amigas que negaram o pedido de Martha fazendo de Ingrid a última opção. Será que era apenas porque Ingrid deixava claro em suas obras que tinha medo da morte? Ao meu ver, qualquer amiga servia. Volto a repetir, não eram mais íntimas e ela nem sabia do câncer. A forma como ela passa a agir para colocar o seu plano em ação, a forma como só pensa em si mesma e passa a justificar como consequência da doença e tratamento, ignorando os sentimentos de Ingrid só reforçaram a minhã visão dela como EGOÍSTA.
Deixando de lado o que eu nem chamo de análise, mas apenas de devaneios pessoais, claro que é um filme digno de debate e vinho. As possibiidades de um filme tão curto são dignas de reuniões semanais para pincelar cada item gerador de reflexão. Até o local ambientado em Nova York me pareceu um pouco provocador, já que a cidade norte-americana é uma excelente referência para vida acelerada e líquida. Só é possível parar para refletir em uma situação como a de Martha? Bom, mais um devaneio pessoal.
Finalizemos com Edward Hopper e as referências do artista na casa escolhida por Martha. A fotografia total dessa casa nos dá uma sensação de ser a obra cinematográfica dentro de um quadro pintado por Hopper. Aliás, suas obras abordam finitude, contemplação, solitude e sentimos uma mesclagem de Hopper e Almodóvar na seleção de cores. Genial. Há muitas referências literárias, cinematrográficas, musicais e até guerras. Não é um filme simples para quem não conhece todas as citações, porém, possível.
Claro que indico para uma abordagem na psiquê humana sobre como enfrentar o fim e como lidar com as questões que deixamos para depois e esse depois chega. Martha acaba transferindo para Ingrid o depois "mãe e filha" - "ela nunca me contou isso sobre o meu pai". Ingrid recebe como presente, talvez a amiga já soubesse disso. Martha lidava com guerras, mas não conseguia lidar com o conflito entre ela e a sua filha. Deixou apenas uma carta para a amiga e uma para a polícia. Para a filha, bens materiais. No quesito das escolhas, bem sabemos que nem todos podem desistir em nome da dignidade diante do óbito e que a grande maioria não tem material poético elitizado para ser paliativo diante da finitude da vida. Mas como bem disse a personagem Ingrid "há várias maneiras para se viver dentro de uma tragédia". Ninguém está imune a passar por elas.
*é a minha primeira impressão após assistir o filme. Depois de conversas com amigas e reflexões, sei que algo vai mudar (ou não) sobre Martha. Ninguém atravessa uma ponte sozinha quando o assunto é relacionamento e o outro decide por muro. Escrevo em outra postagem qualquer mudança de opinião.