sábado, 17 de julho de 2021

Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço


Se você é apaixado por Lampião e Maria Bonita, aconselho que não leia. Simples assim. O mito em torno dos heróis do cangaço vai cair por terra e a ânsia de vômito é certeira a cada página lida. Vale ressaltar que esses personagens foram elaborados pela mídia pouco antes da morte dos líderes e que esse apelido Maria Bonita nem era usado por ela enquanto viva. O Robin Hood e a primeira dama do sertão nasceram após a trágica morte dos dois. 

Maria de Déa era casada antes de se tornar cangaceira e sua chegada ao bando permitiu que os participantes levassem suas  mulheres, mesmo que sequestradas (o que aconteceu com a maioria). O estupro cometido pelos cangaceiros diminuiu, mas não deixou de ser praticado, pois havia prazer em "cobrir uma fêmea". Ser mulher era desgraçadamente perigoso.

A amizade de Lampião com coronéis, aliás, a forma como se tornou cangaceiro e sua amizade com Padim Ciço já demonstra que a sua violência era acobertada por figuras importantes que poderiam dar fim ao cangaço. Quando Lampião se tornou um personagem cinematográfico e midiático de interesse geral de um público nacional e estrangeiro voyerista, surge a necessidade de demonstrar serviço policial e dar fim ao movimento do cangaço. Revisionismo histórico total! 



 

O Avesso da Pele


O Avesso da Pele foi o livro do grupo de leitura da Bilbioteca da UNB no mês de junho. Pode parecer apenas o relato de um filho sobre os seus pais, mas é bem mais do que isso, é um relato vivo da sociedade brasileira. Jeferson Tenório apresenta o relato de Pedro sobre a trajetória dos seus pais antes do seu nascimento e após a separação. Seu pai, um professor que descobre o racismo sofrido desde a infância após o contato com um professor, tenta fazer o mesmo com seus alunos, mesmo desmotivado com o sistema educacional falido em Porto Alegre. Sua mãe, com seus monstros psicológicos advindos da infância, tenta a cura no seu relacionamento conjugal, o que, não ocorre. Esse racismo estrutural mascarado ou ideologicamente justificado é a temática que dá um soco no estômago. Não é uma leitura fácil, mas necessária, a começar pela sala de aula. O desfecho pode parecer apelativo, mas é o mesmo que assistimos nos noticiários anestesiados por esse pileque homérico que nos acomete e nos direciona a normalidade da violência vertical. 
 

Cem Anos de Solidão (releitura)


Confesso que li Cem Anos de Solidão em três dias no ano de 2008. Devorei! Foi meu primeiro caso de amor com Gabriel García Márquez. Não é o meu preferido, apesar de tão aclamado pelo público literário. Decidi lê-lo novamente, pois essa rapidez me fez esquecer e eu gostaria muito de, após a formação em História, absorver a narrativa histórica subliminar (ou não) na Macondo ficcional. Mas, decidi que seria uma leitura sem pressa, apesar que tediosa pelos Aurelianos, Arcádios, Remédios ... muita calma e atenção. Que mente brilhante! Sem descrever o que todos já sabem, é a narrativa de uma América Latina e seus impasses históricos (liberais versus conservadores, exército, sumiço de corpos, o fanatismo religioso, o massacre das bananeiras, a presença estrangeira, o interesse na botânica, as guerilhas e por fim, a forma como a narrativa real é apagada em livros didáticos e mídias a serviço do poder local ou "imperialista"). Só foi possível analisar Cem Anos de Solidão nessa perspectiva histórica após a leitura As veias abertas da América Latina (Eduardo Galeano). Mas, é um livro com várias possibilidades e certamente eternizou o autor colombiano. 

 

Redemoinho em dia quente - Jarid Arraes

 

A escritora, poetisa, cordelista nasceu em 1991 em Juazeiro do Norte (CE) e atualmente mora em SP. Livro escolhido pelo grupo de leitura Leitores Anônimos (junho/2021) revela mulheres em situações cotidianas, o que por si só, traz uma identificação em alguns dos relatos apresentados. Mesmo não sendo baseado em personagens reais, temos narrativas realistas, fantasiosas, psicológicas e também críticas sociais. 

O primeiro conto, da dona Francisca, devota a Padim Ciço, é a abertura que faz você continuar ou largar pelo seu desfecho inesperado. Já em Cinco Mil Litros, situações entre uma mãe e uma filha com a necessidade pautando a ação e o destino de ambas. Já em Moto de Mulher, eis que me vi! Para não tornar cansativo, o que mais me comoveu foi Telhado quebrado com gente morando dentro e o que não traguei de jeito nenhum foi Novo Elemento, tipo, sem sentido, pra mim, obviamente. 

Mesmo sendo sobre um Cariri urbanizado, muito do que foi descrito é comparavél com o cotidiano de mulheres da Capital Federal, talvez por essa aproximação cultural que tanto temos e amamos com o Nordeste. Temas debatidos atualmente e que eram tabu até então, é apresentado  o que abre brechas para o debate. Indico! 

O conto da Aia

 


Bom, eu gosto de distopia. Confesso que a temática é quase profética na onda conservadora que assola a política atual brasileira. A autora, Margaret Atwood, publicou seu livro nos anos 80 e sua obra veio à tona novamente com o sucesso da série, que ainda não assisti. Vale ressaltar que foi o livro de junho do grupo de leitura Leia Mulheres Petrópolis. 

A nação dos EUA após passar por problemas de cunho ambientais, políticos, morais adentra em uma ditadura teocrática baseada em uma autoritarismo puritano. Lembrei muito da obra A Letra Escarlate de Nathaniel Hawthorne (Indico!!!). Mulheres são submetidas aos padrões embasados no Livro Sagrado cristão. Doutrinadas por mulheres mais velhas, são preparadas para fornecer o útero às mulheres estéreis casadas com comandantes. São as Aias. 

Essas mulheres perderam a autonomia sobre o próprio dinheiro, emprego e o próprio corpo. Seus úteros servem ao Estado. Recebem novos nomes e suas escolhas são definidas pela verticalidade do poder, pois uma das causas do fracasso da antiga sociedade, segundo o Estado, foi o excesso de escolhas que as mulheres conquistaram. Tendo como causa maior a descendência e não o matrimônio romântico, as esposas dos comandantes participam dos ritos de fecundação seguindo o Velho Testamento (tão atemporal):

"Raquel disse: dá-me filhos ou senão eu morro... eis aqui a minha serva, entra nela para que tenha filhos sobre os meus joelhos e eu, assim receba filhas por ela".

Claro, que, alguns cidadãos de bem quebram as regras e agem na clandestinidade. Enquanto isso, nossa protagonista procura resistir lembrando do seu passado e da sua identidade, já que o destino das que não se conformam é a substituição ou a morte. Apenas seus úteros tem serventia e nada mais. 

Ainda que seja uma ficção, o desejo do poder vertical é regredir em qualquer conquista do sexo feminino, submetendo a mulher ao modelo conservador do modelo patriarcal. Simples assim.